AS CARQUEJEIRAS DO PORTO
“Via mais longe as mulheres da carqueja,
Curvadas sob molhos incríveis,
Subindo dos barcos rabelos para o cais e,
Calçada da Corticeira acima,
aos rodeios, com uma lentidão e persistência de insectos.
A Calçada da Corticeira,
Ruim de subir, ruim de descer,
Tão ingreme que
parecia um traço quase vertical na encosta.”
PROF. HELDER PACHECO
Em primeiro lugar começo com as palavras do Prof. Helder Pacheco, pois para mim é uma referência, é quem melhor “canta” esta cidade do Porto. Obrigada.
Vamos falar das carquejeiras, ou seja, das mulheres árvore, descalças, a caminhar pelo Porto.
Tenho de falar delas, porque a memória faz parte de mim, porque aconteceu, porque se passou num dos locais que mais amo no Porto e porque desde que despertei para este drama que desconhecia, que procuro informação, relatos, testemunhos.
Enfim, há muitos anos, não tantos assim, houve no Porto uma raça dura de mulheres a que se chamavam “as carquejeiras”.
As Carquejeiras do Porto
Estas mulheres, pobres, todas elas curvadas de carqueja, começavam a sua viagem não muito longe da ponte Luis I e levavam-na à Foz, a Paranhos.
Distribuíam-na por toda a cidade, mas o caminho tormentoso, duro, impensável, criminoso que tinham de percorrer começava mesmo ali nos pés do cais onde os barcos rabelos despejavam a carqueja que elas transportavam pela calçada da corticeira acima.
Esta calçada hoje é das carquejeiras numa justa mudança de nome que a Câmara do Porto decidiu fazer.
A calçada das carquejeiras tem uma inclinação quase vertical, pedras largas, outras mais pequenas que não assentam todas da mesma maneira, isto é, descer sempre com medo de cair, subir parece uma missão impossível.
Pensar que estas mulheres subiam descalças várias vezes ao dia, carregadas com pelo menos 30 quilos à cabeça a troco de uns tostões, deixa-me arrepiada!
A importância das carquejeiras do Porto
A carqueja era levada para as padarias, para as casas senhoriais e era usada nos fornos para cozer o pão, para aquecer as ditas casas. Era um drama silencioso e silenciado.
Custa aceitar que uma cidade tão generosa tenha pactuado durante tanto tempo com esta escravidão humana.
Este martírio acabou nos anos 60 quando o vegetal, enfim, se apagou nas padarias, carvoarias, cerâmicas e passou a ser tudo feito a maçarico, gás, electricidade (“até para acender um fogareiro é com jornais”).
O nosso Soares dos Reis não resistiu ao desafio de transpor para a matéria, o sorriso envergonhado, os cabelos desalinhados daquela flor agreste.
Uma das obras mais emblemáticas do mestre Soares dos Reis teve como modelo a filha de uma carvoeira (transportavam carvão, lado a lado com as carquejeiras) que era sua vizinha.
Trata-se de um busto lindo, comovente.
Com a sua sensibilidade decidiu eternizar o povo do Porto. A pintora Aurélia de Sousa (que muito aprecio e cujo auto-retrato se encontra no Museu Soares dos Reis, vale a pena apreciar, dos mais belos auto-retratos que conheço) imortalizou as carquejeiras numa pintura com uma força desconcertante.
Os artistas sabem celebrar os que merecem Felizmente, o Porto tem muita gente com memória e com sonhos, aqueles que acreditam que a cidade-povo também merece ser lembrada.
Terminado que está o seu martírio, vivam pelo menos as carquejeiras na memória da cidade.
A última carquejeira do Porto
A última carquejeira do Porto, Palmira de Sousa, morreu em 2014 com 102 anos.
Num testemunho, contou que com 10 anos começou a acompanhar a mãe no transporte da carqueja.
Viveu durante muitos anos na Ilha Maria Vitória nas Fontaínhas (existem 4 ilhas nesta zona do Porto onde vivem pessoas extraordinárias que vale a pena conhecer, que nos recebem com um sorriso e nos abrem as portas das suas histórias de vida).
Casou e foi viver para outra ilha, a ilha 50, mas a casa onde vivia foi arranjada e ficou para um GNR, obrigando-a a ir viver para o Bairro do Lagarteiro.
Sentiu muito a falta da corticeira, tinha que lá ir todas as semanas. Era uma festa voltar. Disse que depois do 25 de Abril vivia melhor, tinha de comer, via televisão.
“Dantes tinha uma vida estúpida, agora dou uns passeios com o meu filho à Sra da Saúde, uns passeínhos bons”.
Um agradecimento sentido
Por último quero agradecer, a uma pessoa que não conheço, mas pela qual sinto um profundo respeito, Maria Arminda Santos.
Esta senhora é a principal responsável pela existência de uma escultura da autoria do escultor José Lemos, arrepiante de tão forte, belíssima. “Da cidade às carquejeiras”.
A estátua que não sofrendo, eterniza as dores. Estátua que nasceu de um sonho de uma mulher para homenagear outras mulheres.
Acreditou, juntou forças vivas do Porto e ao fim de 4 anos, conseguiu. PARABÉNS. Missão cumprida.
As cidades não se constroem só de granito, mas da memória de quem nelas viveu, da sua passagem pelo mesmo espaço onde nos toca viver.
A todas as “mulheres ouriço” (foi assim que as chamou o Prof. Helder Pacheco, é mesmo assim que eu as imagino) o meu eterno respeito.
A alameda das fontainhas está ainda mais bonita pois a força desta escultura é arrebatadora, estremecemos quando a admiramos. Assim, recomendo que a observem como ela merece.
Bem-hajam todos os que contribuíram para a memória deste nosso Porto…
by: Maria José Dias
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